Contos, Escrever faz bem!

« Older   Newer »
  Share  
sarahivich
view post Posted on 5/11/2004, 16:12




Insônia

"Eu não gosto de rosas". Ela leu em voz alta a legenda da foto, para logo depois não acreditar. Não era a primeira vez que mentia para si mesma. "Eu não gosto de rosas". Quando isso tinha acontecido? Ela tinha acordado um dia, olhado para as rosas e percebido que não gostava mais das cores, da textura, do cheiro? Lembrou-se de quando era só uma criança e tinha medo de acordar adulta. Em seus pesadelos infantis, se olhava no espelho pela manhã e via uma mulher grande, com as responsabilidades esperando em fila na porta do quarto. Acabou sofrendo de insônia precoce. Será que tinha acontecido algo parecido com as rosas? Será que um belo dia acordou, olhou pela janela e não gostou do que viu no jardim? Teve medo de ter sido assim, por sempre ter tido medo de decisões repentinas. Por que não conseguia se lembrar, afinal de contas? Lembrou-se de outro medo, um medo antigo, que agora já não tinha razão de ser. O medo de dormir amando e acordar não amando mais. De olhar para o lado e não gostar mais dos olhos, da pele, do cheiro do homem deitado ao lado. Passou anos a fio ajoelhando na beira da cama toda noite antes de deitar, rezando para acordar com o mesmo amor com que ia dormir. A idade e as rugas, a essa altura ela já tinha aprendido muito bem, não aparecem em uma noite só. Então, por que o amor desaparecia? Se surpreendeu quando viu que apesar de não encontrar mais o homem ao seu lado, ainda encontrava o amor intacto. Doeu. Mas ela não queria que passasse. Talvez tenha sido nessa fase que tenha ficado tão desgostosa. Talvez tenha sido nessa época que passou a não gostar mais de rosas. Olhou mais uma vez para a foto, leu mais uma vez a legenda. "Eu não gosto de rosas". Resolveu repetir a frase que escrevera há anos, sob a foto também tirada há tanto tempo e, mais uma vez, não soou convincente. Encarou o espelho e repetiu a frase: "Eu não gosto de rosas". Não tinha jeito. Ou mudava a foto, ou mudava a legenda. Na dúvida, resolveu mudar os dois. O porta-retratos ficou vazio. A legenda, rasurada. Talvez, a melhor descrição para o seu passado fosse aquilo mesmo: o nada com um rabisco embaixo. A vida amedrontada, o espaço vazio, as linhas riscadas por pura covardia. "Eu não gosto de rosas". Deitou. Ainda sofria com a insônia, agora não mais precoce. Ficou olhando para o teto e só conseguiu dormir quando amanheceu, às sete da manhã.
 
Top
>Il Monstro<
view post Posted on 7/11/2004, 16:47




Acho que esse não tinha lido, não. Muito bom!
 
Top
sarahivich
view post Posted on 7/11/2004, 18:17




obrigada! acho que é o primeiro que você gosta assim, não?
 
Top
>Il Monstro<
view post Posted on 8/11/2004, 01:36




Acho que sim...
 
Top
sarahivich
view post Posted on 8/11/2004, 06:02




fiquei feliz! que bom que gostou.
 
Top
#FF#
view post Posted on 9/11/2004, 08:42




Também gostei!
Bem mais que do outro.
 
Top
Curuja
view post Posted on 13/11/2004, 03:44




Sarah, ótimo conto!!!!
 
Top
sarahivich
view post Posted on 15/11/2004, 19:39




Obrigada, FF e Curuja!
 
Top
Imortal
view post Posted on 26/11/2004, 05:00




Também gostei. Apesar da sensação que fico muitas vezes ao ler um texto subjetivo de ter entendido da maneira errada.

Não vai ter mais ??????????????
 
Top
sarahivich
view post Posted on 26/11/2004, 16:23




tem esse, que é antigo e triste, e era pra estar num livro que nunca fica pronto:

"Ela tem medo de escuro". Ele achou que tinha dito, mas a voz não saía. Era só um pensamento, um pensamento solitário. Talvez a única frase com nexo que tenha conseguido formular naquele dia. Tentou falar de novo: "ela tem medo de escuro". Talvez se gritasse, se berrasse, conseguiria. "Ela tem medo de escuro!" e, finalmente, ouviu a sua voz. Mas só um fiapo, um murmúrio, uma oração. Repetiu mais uma vez, duas, três. Talvez ainda não tivesse conseguido falar, talvez fosse ficar mudo definitivamente, porque apesar de seus avisos, de suas súplicas repetidas, eles continuaram, sem pestanejar. Trancafiaram-na lá dentro e agora ele estava ali. Impotente, covarde, um mero espectador assistindo o corpo de alguém ser sepultado. Não era nem uma cova rasa. Era só uma gaveta, uma gaveta de cimento escura e sombria, o melhor que ele pôde pagar. E se lembrou quando ela, deitada em seus braços, lhe explicou: "toda minha vertigem é fruto do meu medo do escuro, do meu medo da morte. Eu não quero morrer, não quero que ninguém que eu ame morra. É por isso que, quando choro convulsivamente em seu colo, pedindo, implorando para que eu não morra, como se você fosse o próprio deus, é porque naquele instante eu realmente acredito que você é ele. Um deus bondoso, que me protege, me guia e a quem eu amo acima de todas as coisas." E ele, que nunca foi deus, nem se aproximou disso, não conseguiu salvá-la. E talvez só a amasse realmente agora, depois de morta.


 
Top
Journeyman
view post Posted on 26/5/2005, 18:43




Não sabia que tinha esse espaço por aqui... Vou postar alguma coisa... É bem antigo, já que não escrevo faz algum tempo...
 
Top
Journeyman
view post Posted on 26/5/2005, 18:44




A FLORESTA DAS ILUSÕES

Há tempos não visitava minha cidade natal. Nem podia. Sequer falar sobre vizinhos e amigos era permitido. Meus pais enfureciam-se. Lembro-me de que papai brigou com o dono do armazém, um homem obscuro, de hábitos estranhos, temido por todas as crianças. Menos por mim. Não me intimidava sua cara feia, furiosa quando roubávamos algumas maçãs da bancada.
Mamãe era bastante querida. Não só por seus sorrisos doces, mas pelo carinho e presteza com que atendia a todos. Uma mulher exemplar, digna de assumir o papel de conselheira da cidade. Todos os dias, várias pessoas a bater à nossa porta em busca de ajuda. Namoros, casamentos, brigas de casais, investimentos no comércio, quase tudo fazia parte da pauta de mamãe.
Chegada a hora de jantar, ela contava a papai um pouco de cada consulta. E ele, uma cara de espanto, um riso inflamado, a reação variava de acordo com o revelado. Mamãe mandava-o parar, exigia respeito aos problemas alheios, mas, no fim, sorria. Apenas quando estava em casa, à frente de mim e de papai: ninguém mais era testemunha dos movimentos de seu pescoço branco, de sua garganta trêmula, quando gozava de uma risadinha.
Um dia, saí para brincar com meu melhor amigo, Tinho. Voltando para casa, sua avó chorava em minha sala. Espantei-me, mas, em Tinho, nenhuma aflição, gesto, nada que justificasse a tristeza de Dona Amélia. Teria me contado se soubesse de algum problema. Mamãe mandou que fosse para o quarto. Não fui, paralisado, assustado com tamanho e estranho choro. Tornou a repreender-me. Gritou. Pegou-me pelo braço, fez-me subir as escadas à força.
Sempre pude ouvir as consultas, mamãe dizia que me ajudariam a compreender melhor a vida e me fariam um grande homem. Por vezes, pedia-me para sair mas, com seu consentimento, escondia-me atrás da porta e punha-me a ouvir tudo. Era o nosso segredo. O que haveria de tão grave, que não pudesse ouvir? Não podia ser nada com Tinho, estava tão arisco, feliz. Seria uma daquelas doenças que matam aos poucos sem a gente perceber? Ou era algo mesmo com sua avó, já velha e a pedir para que mamãe cuidasse do neto? Pus-me a matutar por umas duas horas. Até que me chamaram para jantar.
Como de costume, mamãe contava o que fizera durante o dia. Papai ouvia a tudo atentamente, enquanto comíamos. Mas para meu espanto, a conversa com Dona Amélia não foi citada. Quando terminou de falar, ela mirava-me com um olhar de ameaça, a ordenar que não tocasse no assunto. Obedeci, pedi licença e fui dormir. Papai estranhou: sempre pedi para ficar acordado até tarde para acompanhá-lo nos cálculos de suas vendas. Ele fornecia leite e queijo para algumas lojas da cidade. Inclusive ao armazém daquele tal homem estranho. Antes que pudesse dizer algo, mamãe levou-me, ela mesma, ao quarto.
Parecia arrependida. Beijou-me a testa e pediu desculpas. Sua garganta a tremular, era mais um sorriso, daqueles que só eu presenciava. Chovia demais. A luz azul dos relâmpagos a invadir meu quarto, o som temível dos trovões e ela, mamãe, a acariciar meus cabelos. Mãos de seda em acalento, sabia superar qualquer angustia ou medo. A seu lado, sentia-me imortal. Ajeitou o lençol, ensaiou um adeus e saiu. Fechei os olhos. Dormi. Por pouco, muito pouco tempo. Um estanho ruído teimava me acordar. Não quis levantar-me. Talvez, fosse só o vento a bater na vidraça, algum bicho resmungando no quintal. Mas tinha medo. Sem mamãe, eu era o medo.
Paff! O barulho ecoou outra vez e, lentamente, decidi caminhar até a janela. Tomava cuidado até ao respirar. Abri um pouco a cortina, tentei espiar: a escuridão não me deixava ver. Tirei a tranca, abri a janela: nada. Pronto para fechá-la, uma mão invadiu o parapeito. Caí. E antes que pudesse gritar, o clarão de um raio me deixou ver o rosto de Tinho, curiosamente tranqüilo. Sentou-se no chão, sua cabeça arriada, os olhos a mirar o invisível.
Permanecemos estáticos durante mais uns cinco minutos, até que Tinho levantou-se e, com um gesto, pediu que o acompanhasse. Não hesitei: a curiosidade era maior que o medo. Sua avó em minha casa, a reação de mamãe e agora esta visita inesperada: alguma coisa, pensei, alguma coisa muito importante estava acontecendo.
Tinho me esperava no quintal, enquanto punha minha capa de chuva. Sua roupa encharcada, parecia não ligar para os trovões. Saí pela janela e andamos até um ponto bem afastado da cidade, próximo da Floresta das Ilusões.
Certa vez, mamãe contou-me que a floresta tinha esse nome porque, há muito, todas as pessoas que por lá passavam viam assombrações. Mas as ilusões podem ser boas, eu pensava, enquanto ela insistia que não. Que por isso, mandou cercar toda a floresta com muros altíssimos, cheios de arame farpado. Também havia um portão, do qual ela escondia a chave.
Tinho encontrou uma árvore gigantesca próxima à um muro. Começou a subir pelo tronco, apoiava-se nos galhos com habilidade, até chegar ao topo e de lá gesticular para mim, tentando me convencer a fazer o mesmo. Decidi que era melhor voltar para casa. Mas ao dar os primeiros passos, percebi que teria de fazê-lo sozinho, naquela escuridão impregnada de raios e trovões. O medo me venceu. E subi a árvore, saltando de galho em galho com dificuldade.
No topo, uma vista fascinante. Dentro da floresta, não chovia. O céu iluminado: era o sol da manhã. Pássaros voavam, cantavam felizes em espantosa harmonia. Parecíamos na fronteira entre dois mundos. Tinho foi o primeiro a saltar e, do alto da árvore, vi surgirem-lhe asas. No fundo da paisagem, ela, encantadora. Uma mulher circunscrita em uma aura azul, cristalina, exalando jasmim, tomou-me a alma para dançar.
Acordei. Estava no quarto. Sobre a cama. Seco como se não houvesse sequer saído à chuva. Mamãe arrumava nossas coisas depressa: parecia nervosa. Papai pedia para que ela fosse mais rápida. Estavam fugindo, pensei. Entramos no carro e jamais voltamos. Mas aquela mulher ainda habita os meus desejos. Seu perfume sempre em minhas narinas. Basta fechar os olhos e sentir.
Foi por isso que decidi voltar a essa pequena cidade que pouco mudou. O armazém no mesmo lugar, o homem estranho enxotando crianças. Não tenho medo. Impossível assustar-se depois de farejar o perfume daquela que habita a floresta que ninguém conhece. Que ninguém sabe por onde andam suas chaves, seus muros e arames farpados. Vivo a procurá-la, seguindo os rastros do jasmim. Para criar asas, voar e encontrar de novo e para sempre a anja dos meus sonhos.

 
Top
>Il Monstro<
view post Posted on 27/5/2005, 00:13




Finalmente Journeyman usou sua compulsão por postar para algo útil!

Legal o texto, cara. Valeu por partilhar com a gente.

Suponho que ver um texto de sua autoria nesse espaço venha a se tornar algo recorrente...

Edited by >Il Monstro< - 27/5/2005, 01:25
 
Top
Journeyman
view post Posted on 27/5/2005, 00:38




Hahahaha! Não tão recorrente como eu gostaria, caro Monstro. Na verdade, não tenho muita coisa aqui no arquivo, mas aos poucos vou postando...

Sõ não entendi o que você quis dizer com "usar a compulsão para postar algo útil"...
 
Top
#FF#
view post Posted on 27/5/2005, 18:23




QUOTE (Journeyman @ 26/5/2005, 20:38)
Sõ não entendi o que você quis dizer com "usar a compulsão para postar algo útil"...

Nem eu!

Muito do que ele já postou me parece bem mais útil do que esse texto que um dia (quando vencer a preguiça ) eu lerei!


Se você julga esses textos são tão úteis, por que ainda não escreveu nenhum?
 
Top
28 replies since 5/11/2004, 16:12   499 views
  Share