| A FLORESTA DAS ILUSÕES Há tempos não visitava minha cidade natal. Nem podia. Sequer falar sobre vizinhos e amigos era permitido. Meus pais enfureciam-se. Lembro-me de que papai brigou com o dono do armazém, um homem obscuro, de hábitos estranhos, temido por todas as crianças. Menos por mim. Não me intimidava sua cara feia, furiosa quando roubávamos algumas maçãs da bancada. Mamãe era bastante querida. Não só por seus sorrisos doces, mas pelo carinho e presteza com que atendia a todos. Uma mulher exemplar, digna de assumir o papel de conselheira da cidade. Todos os dias, várias pessoas a bater à nossa porta em busca de ajuda. Namoros, casamentos, brigas de casais, investimentos no comércio, quase tudo fazia parte da pauta de mamãe. Chegada a hora de jantar, ela contava a papai um pouco de cada consulta. E ele, uma cara de espanto, um riso inflamado, a reação variava de acordo com o revelado. Mamãe mandava-o parar, exigia respeito aos problemas alheios, mas, no fim, sorria. Apenas quando estava em casa, à frente de mim e de papai: ninguém mais era testemunha dos movimentos de seu pescoço branco, de sua garganta trêmula, quando gozava de uma risadinha. Um dia, saí para brincar com meu melhor amigo, Tinho. Voltando para casa, sua avó chorava em minha sala. Espantei-me, mas, em Tinho, nenhuma aflição, gesto, nada que justificasse a tristeza de Dona Amélia. Teria me contado se soubesse de algum problema. Mamãe mandou que fosse para o quarto. Não fui, paralisado, assustado com tamanho e estranho choro. Tornou a repreender-me. Gritou. Pegou-me pelo braço, fez-me subir as escadas à força. Sempre pude ouvir as consultas, mamãe dizia que me ajudariam a compreender melhor a vida e me fariam um grande homem. Por vezes, pedia-me para sair mas, com seu consentimento, escondia-me atrás da porta e punha-me a ouvir tudo. Era o nosso segredo. O que haveria de tão grave, que não pudesse ouvir? Não podia ser nada com Tinho, estava tão arisco, feliz. Seria uma daquelas doenças que matam aos poucos sem a gente perceber? Ou era algo mesmo com sua avó, já velha e a pedir para que mamãe cuidasse do neto? Pus-me a matutar por umas duas horas. Até que me chamaram para jantar. Como de costume, mamãe contava o que fizera durante o dia. Papai ouvia a tudo atentamente, enquanto comíamos. Mas para meu espanto, a conversa com Dona Amélia não foi citada. Quando terminou de falar, ela mirava-me com um olhar de ameaça, a ordenar que não tocasse no assunto. Obedeci, pedi licença e fui dormir. Papai estranhou: sempre pedi para ficar acordado até tarde para acompanhá-lo nos cálculos de suas vendas. Ele fornecia leite e queijo para algumas lojas da cidade. Inclusive ao armazém daquele tal homem estranho. Antes que pudesse dizer algo, mamãe levou-me, ela mesma, ao quarto. Parecia arrependida. Beijou-me a testa e pediu desculpas. Sua garganta a tremular, era mais um sorriso, daqueles que só eu presenciava. Chovia demais. A luz azul dos relâmpagos a invadir meu quarto, o som temível dos trovões e ela, mamãe, a acariciar meus cabelos. Mãos de seda em acalento, sabia superar qualquer angustia ou medo. A seu lado, sentia-me imortal. Ajeitou o lençol, ensaiou um adeus e saiu. Fechei os olhos. Dormi. Por pouco, muito pouco tempo. Um estanho ruído teimava me acordar. Não quis levantar-me. Talvez, fosse só o vento a bater na vidraça, algum bicho resmungando no quintal. Mas tinha medo. Sem mamãe, eu era o medo. Paff! O barulho ecoou outra vez e, lentamente, decidi caminhar até a janela. Tomava cuidado até ao respirar. Abri um pouco a cortina, tentei espiar: a escuridão não me deixava ver. Tirei a tranca, abri a janela: nada. Pronto para fechá-la, uma mão invadiu o parapeito. Caí. E antes que pudesse gritar, o clarão de um raio me deixou ver o rosto de Tinho, curiosamente tranqüilo. Sentou-se no chão, sua cabeça arriada, os olhos a mirar o invisível. Permanecemos estáticos durante mais uns cinco minutos, até que Tinho levantou-se e, com um gesto, pediu que o acompanhasse. Não hesitei: a curiosidade era maior que o medo. Sua avó em minha casa, a reação de mamãe e agora esta visita inesperada: alguma coisa, pensei, alguma coisa muito importante estava acontecendo. Tinho me esperava no quintal, enquanto punha minha capa de chuva. Sua roupa encharcada, parecia não ligar para os trovões. Saí pela janela e andamos até um ponto bem afastado da cidade, próximo da Floresta das Ilusões. Certa vez, mamãe contou-me que a floresta tinha esse nome porque, há muito, todas as pessoas que por lá passavam viam assombrações. Mas as ilusões podem ser boas, eu pensava, enquanto ela insistia que não. Que por isso, mandou cercar toda a floresta com muros altíssimos, cheios de arame farpado. Também havia um portão, do qual ela escondia a chave. Tinho encontrou uma árvore gigantesca próxima à um muro. Começou a subir pelo tronco, apoiava-se nos galhos com habilidade, até chegar ao topo e de lá gesticular para mim, tentando me convencer a fazer o mesmo. Decidi que era melhor voltar para casa. Mas ao dar os primeiros passos, percebi que teria de fazê-lo sozinho, naquela escuridão impregnada de raios e trovões. O medo me venceu. E subi a árvore, saltando de galho em galho com dificuldade. No topo, uma vista fascinante. Dentro da floresta, não chovia. O céu iluminado: era o sol da manhã. Pássaros voavam, cantavam felizes em espantosa harmonia. Parecíamos na fronteira entre dois mundos. Tinho foi o primeiro a saltar e, do alto da árvore, vi surgirem-lhe asas. No fundo da paisagem, ela, encantadora. Uma mulher circunscrita em uma aura azul, cristalina, exalando jasmim, tomou-me a alma para dançar. Acordei. Estava no quarto. Sobre a cama. Seco como se não houvesse sequer saído à chuva. Mamãe arrumava nossas coisas depressa: parecia nervosa. Papai pedia para que ela fosse mais rápida. Estavam fugindo, pensei. Entramos no carro e jamais voltamos. Mas aquela mulher ainda habita os meus desejos. Seu perfume sempre em minhas narinas. Basta fechar os olhos e sentir. Foi por isso que decidi voltar a essa pequena cidade que pouco mudou. O armazém no mesmo lugar, o homem estranho enxotando crianças. Não tenho medo. Impossível assustar-se depois de farejar o perfume daquela que habita a floresta que ninguém conhece. Que ninguém sabe por onde andam suas chaves, seus muros e arames farpados. Vivo a procurá-la, seguindo os rastros do jasmim. Para criar asas, voar e encontrar de novo e para sempre a anja dos meus sonhos.
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