A Última Crônica, A última homenagem a Fernando Sabino

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Curuja
view post Posted on 16/10/2004, 23:35




A Última Crônica

Fernando Sabino

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso
 
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Alkalino
view post Posted on 17/10/2004, 00:11




Foi por causa desse texto, que caiu em uma prova de português no colégio onde eu estudava, que eu comecei a gostar do Fernando Sabino. Sempre muito bom.
 
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Anderson
view post Posted on 17/10/2004, 08:48




Maneiro mesmo.

Vou enviar por e-mail pro meu povo, incluindo o comentário do Alkalino pra ficar ainda mais comovente.

Colocarei assim no fim: "Extraído de um fórum de discussão".
 
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sarahivich
view post Posted on 17/10/2004, 18:10




Esse texto é maravilhoso. O Sabino é maravilhoso. Eu li esse texto, do João Paulo Cuenca, a respeito da morte dele e gostei:

Da interrupção, um caminho novo
por João Paulo Cuenca

O que ia fazer ali na hora do recreio, ninguém entendia muito bem. Nem os amigos mais próximos, nem as namoradinhas. Muito menos a freira que tomava conta da biblioteca. No início, o garoto era acanhado. Depois, ganhou intimidade com os autores de que mais gostava, entre os vários que experimentava. Escolhia os livros com curiosidade inocente, sem recomendação. Lia e ia fazendo seu gosto. Mesmo podendo levá-los para casa, gastava tempo por ali, adiantando algumas páginas para eleger qual deles leria até o fim. Pelas largas janelas chegava o som longínquo da algazarra dos outros alunos, como se fizessem parte de outra vida.

Não eram só os livros que o atraíam à biblioteca. Ia sempre que estava aborrecido. Querendo ficar só. Podia ser uma paixão platônica por uma colega ou pela professora de matemática. Uma briga com amigos. Outra em casa, onde fazia birra e chorava, dizendo-se independente. E olha que a coisa já tinha sido mais feia. Quando menor, era uma criança de rompantes inacreditáveis. Comum dar com a cabeça na parede. Dizer que ia fugir e não voltar. Perguntava o tempo todo: por que isso, por que aquilo? Dizia que ia casar com a professora. Inventava moda. Brincava sozinho. Criava jogos que ninguém mais entendia. Não tinham como.

Cresceu um pouco, mas a sensação de isolamento continuou, apesar de já cultivar algumas amizades que durariam décadas. Mas, se as férias pareciam um intervalo gigantesco na sua vida, o que dizer de um ano ou dez? Quando pensava que um dia ficaria velho como seus pais, a professora ou a senhora que o observava com ar assoberbado entre os livros, uma onda de sentimentos contraditórios vinha à tona. Planejava ser astronauta, ator, milionário, espião, bombeiro, jogador de futebol e diretor de cinema. Entre as cem vidas que podemos escolher, gostava de pensar que poderia viver todas. Mas, no instante seguinte, recuava mil passos. E então, era como se não pudesse viver nem a sua.

Muitas vezes o desgosto que o levava à biblioteca era maior do que simplesmente orgulho ferido. Algo que perpassava todo o resto e que ele não sabia explicar. Um olhar triste de nostalgia precoce, encarando a fresta por onde lhe escapava a alma. Até os momentos mais alegres vinham acompanhados de certa melancolia, saudade deslocada no tempo. Nessas horas, via-se em desvantagem em relação ao resto do mundo. Não encontrava cumplicidade em lugar algum. Era um menino de angústias infinitas.

A Irmã Laura tentava lhe podar as leituras. De início, com algum sucesso. Achava que alguns livros o garoto só poderia ler no segundo grau. Implicava com ele. Que estranho era alguém amolar quem só queria ler livros! O que poderia haver de tão importante em um moleque lendo um livro? E principalmente aquele livro, que ela considerava tão impróprio? Eu não tinha mais do que doze anos quando surrupiei O encontro marcado da biblioteca do Colégio Sion, no Cosme Velho.

Do Fernando Sabino, já havia lido praticamente tudo, os volumes de crônicas (como muitos, fui apresentado ao Sabino pela série Para gostar de ler) e seus outros romances (O menino no espelho e O grande mentecapto, com destaque). Era seu fã confesso e solitário, entre colegas que não ligavam muito para livros. Essa relação ganhou outras tintas depois que li o ''encontro''. Sabino, a esta altura amigo íntimo, me deu as palavras que eu ainda não conhecia para definir e explicar a angústia que eu puxava sem saber. Não só me deu palavras, mas me acompanhou por anos. Já não me sentia ilhado naquele sentimento. Havia Eduardo Marciano, e havia eu. Que, de forma torta, fui me vendo cada vez mais naquele livro, em cada vez que o relia, em todo ano que o reli.

Quando soube da morte do Fernando, depois da tristeza e de um porre de oito horas, amanheci pensando que nunca havia lhe agradecido. Tímido ou receoso, nunca tentei entrar em contato, nem por fax ou carta. O máximo que fiz foi, alguns meses atrás, lhe enviar uma cópia do meu primeiro romance com uma dedicatória onde eu também me dizia ser um Marciano. Hoje vejo como fui sem graça. Afinal, como agradecer a alguém que lhe deu o norte na vida? Se antes eu pensava em cem caminhos, Sabino me apontou o único possível.

Obrigado, Fernando. Você não me deu um nome, mas me ofereceu uma estrela. Eu acreditei, fui buscá-la. Hoje, continuo essa busca. Preciso continuar, mesmo agora que o mundo ficou pior, sem um Fernando escrevendo crônicas, viajando pelo mundo, cercado de amigos, contando histórias, bebendo uísque, tocando bateria, ouvindo jazz, passeando por Ipanema, não atendendo o telefone e generosamente editando seus tesouros. Estamos sempre começando. E é preciso continuar, mesmo sabendo que seremos interrompidos. Estamos sempre começando. Antes do fim, e apesar dele, estamos sempre começando. Fico sem jeito de falar, Fernando, mas nos últimos quinze anos, te amei profundamente. Não apenas como se ama um autor, mas como se ama um amigo, um companheiro de todas as horas. Por tudo, como te agradecer, Fernando?
 
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