| Segue uma entrevista com a médica que recebeu Ayrton Senna no hospital Maggiore em Bolonha e atestou sua morte.
Doutora, em que condições Ayrton chegou aos seus cuidados, logo depois de descer do helicóptero?
Ele já havia recebido os primeiros socorros na pista e no helicóptero. Estava pálido, mas belo, sereno... Um jovem bonito, com os cabelos revoltos, os olhos fechados. É a imagem que guardo. Tinha um corte na testa, três ou quatro centímetros. Mais nada. Era a única ferida. Chegou ainda de macacão. Mas quando o viramos, vi que tinha muito sangue. E eu me perguntava: "Mas de onde vem tanto sangue?" Saía de trás, da base do crânio. Lembro do macacão, quando lavamos, para devolver à família, tinha tanto sangue... E eu disse à Monica, uma assistente de enfermagem: "Não podemos entregar isso a eles assim". Mas era colocar na água e a água ficar vermelha.
Ficou gravada na memória de todos aquele sangue na pista...
Foi da traqueostomia. O sangue era dele.
Onde a senhora estava no momento do acidente?
Em casa, assistindo à corrida pela TV. Quando vi a batida, e a cabeça dele caindo para o lado, já me vesti, antes mesmo de me chamarem. Nem esperei pelo bip. Sabia que seria necessária minha presença no hospital. Eu estava chegando com meu carro quando o helicóptero estava descendo.
Pela TV, deu para ter idéia da gravidade?
Pelo movimento da cabeça, eu concluí na hora que era algo muito grave. Ali ele já entrava em coma, mas o coma é um fenômeno muito estranho. Por isso foi só quando vimos o resultado da tomografia que tive certeza de que não havia nada a fazer, embora o doutor Gordini (Giovanni Gordini, que o atendeu na pista) já tivesse me avisado que não tinha volta. Aí fizemos um eletroencefalograma. Já não havia mais atividade elétrica. Quando ele chegou, o pulso estava fraquíssimo e quase sem pressão. Mas antes do eletro, tinha voltado tudo ao normal. Por isso, até ver a tomografia, quem sabe... Mas quando vimos... Bem, aqui não há nada a fazer.
No hospital, como a notícia foi dada aos que estavam no 12º andar?
Eu me lembro de seu irmão, não sei se ele tinha noção da gravidade da situação. Eu o levei para ver os resultados dos exames. Expliquei que já não havia mais atividade elétrica. Mas quem assumiu o controle de tudo foi uma moça, que parecia tomar as decisões naquele momento (ela se refere a Betise Assumpção, então assessora de imprensa de Senna, hoje casada com Patrick Head, um dos sócios da Williams).
A senhora tinha a percepção de que participava, de certa forma, de um momento histórico?
Tinha. Mas mesmo assim, nessas horas você deixa isso de lado e segue os protocolos precisos de atendimento. A, B, C, D, todos os procedimentos. Isso ajuda a vencer a emoção. Alguns anos antes, houve um acidente de trem em Bolonha, e as primeiras vítimas que chegaram ao hospital eram crianças de 3, 4, 5 anos. Aí a disciplina é importante, senão você não faz nada. Eu fui para um canto e chorei por 30 segundos. "Agora chega", disse. "Ao trabalho". Com Senna, não chorei. Segurei a emoção. É uma forma de disciplina. Estávamos todos emocionados, mas isso não condicionou nosso trabalho.
Houve alguma chance de sobrevivência?
Não. Quando vimos o resultado do eletro... Bem, pela lei ele não estava morto, era preciso esperar o coração parar de bater. Mas não, não havia nenhuma esperança. Foi imediata a profundidade do coma na batida.
A senhora se lembra se dormiu naquela noite?
Em dias como aquele não se dorme sem umas 20 gotas de Valium... Era um jovem, um piloto, ele em particular, um pouco herói, carismático. Eu recebi muitas cartas do Brasil, gente me perguntando se ele tinha recuperado a consciência. As pessoas tinham necessidade de saber algo.
A senhora é religiosa?
Não praticante. Mas penso em Deus, e isso ajuda. Depois vim a saber que ele era assim. Sabe, me parece que ele sempre achou que iria morrer jovem. "Morre jovem quem ao céu é caro", dizem os mais antigos. Talvez se envelhecesse, não teria havido essa comoção. Ele deixou uma história que não deixaria se envelhecesse. É só uma opinião, mas eu acho que se ele pudesse escolher entre morrer jovem e envelhecer... Acho que pagaria esse preço.
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