| Tinha olhos fundos, como a Carolina da canção do Chico: “Carolina, nos seus olhos fundos, guarda toda a dor, a dor de todo esse mundo”. Lembrou-se de quando a mãe a ninava com a música, nas madrugadas infantis – mas já insones – cheias de lágrimas e de um medo inexplicável. E foi com os olhos embotados – assim como os das noites de anos atrás - de uma dor tão ininteligível quanto todas as outras, que Carolina chegou a apertar o botão do elevador, para logo depois desistir de esperar. Um minuto, dois minutos – do que adiantava o tempo? Tudo terminaria no mesmo lugar, não terminaria? Resolveu subir pelas escadas. Sombrias escadas. Não tinha mais a mãe para lhe guiar. Não tinha mais ninguém para lhe guiar. A mão pequenina segurando com força o braço materno, os olhos cerrados, os pés que não paravam de tropeçar. O medo do grande muro cinza do cemitério, que parecia se estender até o infinito. Seis anos de idade. E, novamente, a mãe a cantarolar para lhe espantar os temores: “Carolina, nos seus olhos tristes, guarda tanto amor, o amor que já não existe”. Amor que já não existe. Degrau por degrau, ia escalando devagar o prédio. Invadindo andar por andar. Não adiantava esperar, mas também não adiantava correr. Tudo terminaria no mesmo lugar, se lembrou novamente. Tudo. Rabugice, raiva, ódio. Ou amor. Do que adiantava todo o sentimento, seja lá qual ele fosse, se o fim seria o mesmo? Queria novamente o muro cinza e o braço da mãe. Queria se agarrar ao muro do cemitério, queria voltar a anos atrás, queria ouvir a voz da mãe a lhe cantar “lá fora, amor, uma rosa nasceu, todo mundo sambou, uma estrela caiu” num fio de esperança. Queria não temer mais nada, mas tinha sido o medo que a empurrara até o parapeito. O medo, nada mais. A luz do sol cerrava os seus olhos apesar da noite já estar alta. O mar de prédios continuava até onde sua vista podia alcançar. A falta de um horizonte lhe embebedava, mas não o bastante para lhe fazer desistir. Aquele era o fim de Carolina, que com a coragem que só o medo poderia lhe dar, pulou ouvindo que “lá fora, amor, uma rosa morreu, uma festa acabou, nosso barco partiu”. O estrondo veio antes de completar os últimos versos - “eu bem que mostrei a ela, o tempo passou na janela, só Carolina não viu”. Depois, só o silêncio. Retumbante e aterrador.
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