| Deus no banco dos réus
Livros que responsabilizam a religião por males da humanidade viram novo filão editorial e reforçam discussão filosófica sobre o ateísmo; chegam ao país obras de Christopher Hitchens e Richard Dawkins
SYLVIA COLOMBO MARCOS STRECKER DA REPORTAGEM LOCAL
A religião está sentada no banco dos réus. O ateísmo, que há séculos é um tema filosófico, vive agora um "boom" editorial. Livros que não só questionam a existência de Deus como culpam a religião (qualquer religião) por todos os males da humanidade vêm freqüentando as listas de mais vendidos.
É certo que o 11 de Setembro e a preocupação com o fundamentalismo islâmico têm relação direta com o fenômeno. Mas também sobram ataques às outras crenças, tidas como responsáveis por cercear o desenvolvimento da ciência e a liberdade sexual, além de provocar guerras ao longo da história.
O biólogo Richard Dawkins, com "Deus, um Delírio" (que chega ao Brasil em agosto), e o ensaísta inglês Christopher Hitchens, com "God Is Not Great" (Deus não é o máximo), são os respeitados best-sellers dessa nova onda ateísta.
Dawkins e Hitchens guiam ateístas Biólogo norte-americano e polemista ensaísta britânico levam argumentos ceticistas a extremos e viram best-sellers
Para Marcelo Gleiser, "novos ateístas" não representam comunidade científica e colecionam inimigos pela arrogância
DA REPORTAGEM LOCAL
"Graças ao telescópio e ao microscópio, a religião não oferece mais explicações para nada importante", diz Christopher Hitchens em "God Is Not Great" (leia resenha abaixo). O polemista britânico, conhecido agitador político de direita, conhece hoje, por conta de suas provocações à religião, um sucesso nunca antes alcançado por seus mais de 20 livros e inúmeros ensaios publicados em jornais e revistas.
Apenas uma semana após o lançamento, no Reino Unido, Hitchens já havia vendido 4.000 cópias do livro. Seis semanas depois, ele estava em sua sétima impressão e desembarcava nos EUA com loas da crítica e curiosidade geral.
"Eu já tinha criticado o uso nocivo da religião quando escrevi o livro sobre Madre Teresa de Calcutá", disse Hitchens à Folha. "Agora, faço um ataque geral à religião, pois ela é uma má influência."
O argumento principal de "God Is Not Great" é que a religião serviu ao homem como explicação do mundo quando a ciência não existia. Depois disso, não só teria se tornado inútil como passado a ser um entrave para o conhecimento.
Com ironia e pegadinhas retóricas, Hitchens lança desafios: "Se Deus é o criador de todas as coisas, por que devemos celebrá-lo incessantemente por fazer algo que para ele é tão natural?". Também acusa tanto o islamismo como o cristianismo de impedirem que avanços da ciência ajudem a sanar feridas do Terceiro Mundo. Os extremistas islâmicos, por resistir a receber ajuda dos países ricos, achando que a medicina ocidental faz parte do projeto de dominação capitalista dos EUA, e a Igreja Católica, ao condenar milhões à morte por ser contra o aborto e o uso da camisinha, baseada em dogmas irracionais. O ensaísta se refere ao papa Bento 16 como "reacionário medíocre".
Hitchens pega carona no sucesso de Richard Dawkins, cujo "Deus, um Delírio", que chega aqui em agosto, vendeu meio milhão de exemplares nos EUA e mais de 300 mil no Reino Unido. Biólogo especializado na teoria da evolução, Dawkins diz que a intenção de seu livro é convencer as pessoas de que devem libertar-se totalmente desse "vício" que é a religião e acrescenta que Deus é homofóbico, racista, genocida, entre outros atributos nada afáveis. Para o biólogo, Deus não poderia ser uma divindade, pois um ser tão complexo e superior ao homem só poderia ter surgido bem depois deste, como conseqüência da evolução, e não antes de todas as coisas, contrariando a teoria de Charles Darwin (1809-1882).
Em "Quebrando o Encanto", o filósofo norte-americano Daniel Dennett faz uso do darwinismo para analisar a religião como produto da evolução humana, e não como força de raízes sobrenaturais.
Em entrevista à Folha, Dennett disse que espera que as pessoas aprendam a discutir e a investigar a religião de um modo mais natural e científico -e está otimista. "É preciso que deixemos de evitar tópicos que podem ofender os devotos. E acho que cada vez mais há pessoas religiosas que querem discutir suas crenças com céticos e cientistas." Dennett defende uma revolução no modo como se estuda religião aos moldes da que Alfred Kinsey (1895-1956) provocou com relação ao sexo nos anos 40.
No Brasil
As prateleiras das livrarias brasileiras já estão cheias de recentes títulos ateístas. O best-seller do filósofo francês Michel Onfray, "Tratado de Ateologia", acaba de sair pela Martins Fontes, enquanto "O Livro Negro do Cristianismo - Dois Mil Anos de Crimes em Nome de Deus", de Jacopo Fo, Sergio Tomat e Laura Malucelli, chega agora pela Ediouro.
Plínio Junqueira Smith, doutor em filosofia pela USP, participa de um grupo de discussões sobre o ceticismo, formado na Unicamp. "Nossa preocupação é tentar compreender a história do ceticismo e fazer a reflexão sistemática sobre questões céticas atuais", disse. Smith organizou "Ensaios sobre Ceticismo", coleção de artigos sobre o tema, e fez o prefácio de "Ateísmo e Revolta", de Paulo Jonas de Lima Piva, uma análise do pensamento do padre ateu Jean Meslier, que viveu no século 17. Ambos os livros saem agora pela editora Alameda.
Confusão
Para o colunista da Folha Marcelo Gleiser, o grupo de "novos ateístas" está causando uma "grande confusão". "Estão exacerbando as já arraigadas posições anticientíficas dos mais religiosos e criando novos inimigos devido à arrogância."
Gleiser, professor de física teórica no Dartmouth College (EUA), acha perigoso que eles sejam vistos como porta-vozes da comunidade científica. "Não é verdade. Do ponto de vista da ciência, a posição de ateu radical não faz sentido. Para se afirmar que Deus não existe, é necessário supor que detemos a totalidade do conhecimento, algo que é inatingível pelo fato de a ciência ser uma criação humana e limitada."
Para ele, o máximo que cientistas podem dizer é que "a existência de um Deus judaico-cristão é contrária ao que conhecemos do mundo". Por outro lado, "não podemos afirmar que a informação atual da ausência de uma divindade é definitiva pois não temos informação sobre tudo. A única posição consistente com a ciência é o agnosticismo ou, no máximo, um ateísmo liberal, pronto a aceitar evidência em contrário, caso ela ocorra". (SYLVIA COLOMBO e MARCOS STRECKER)
CRÍTICA
Em "God Is Not Great", ateísmo de ensaísta vira nova religião
JOÃO PEREIRA COUTINHO COLUNISTA DA FOLHA
O que seria de nós sem Deus? A pergunta é antiga, a urgência é recente: no dia 11 de setembro de 2001, as Torres Gêmeas desabavam perante os olhos incrédulos do mundo. E entre os responsáveis pelo massacre, Deus também estava na lista. Se a religião não existisse, o fanatismo jamais teria voado até Nova York. A religião destrói tudo. A história da religião é a história da desgraça humana.
Christopher Hitchens acredita que sim, em "God Is Not Great". Esclarecimento: gosto de Hitchens e há vários anos que acompanho o bicho. Não é fácil: são duas dezenas de livros e incontáveis colunas para incontáveis publicações de elite (da "New Statesman" à "Vanity Fair", da "Slate" ao "TLS").
Depois de Mencken e Gore Vidal, Hitchens tem a raríssima qualidade de conciliar profundidade teórica com um destrutivo e impressivo sentido de humor. Irresistível, não? Sem dúvida. Irresistível mas falível, sobretudo quando a profundidade não acompanha o humor. Acontece com "God Is Not Great", que provoca riso e frustração em qualquer leitor informado. O riso está na iconoclastia de Hitchens (Maomé era epilético? Jesus morreu pelos pecados dos homens mas ressuscitou ao terceiro dia?), uma iconoclastia que procura mostrar duas coisas: primeiro, que a existência de Deus é uma impossibilidade; e, segundo, que as religiões organizadas são uma malignidade. A frustração está na natureza pouco convincente dos argumentos.
Para Hitchens, a existência de Deus é uma impossibilidade pela razão bem simples de que foram os homens a criar o divino, e não o contrário. Basta olhar em volta: como conciliar a idéia de um criador perfeito com o estado imperfeito do mundo?
Na verdade, um mundo imperfeito não é incompatível com um criador perfeito se a liberdade humana é, simultaneamente, uma dádiva e um princípio de indeterminação. Se Hitchens tivesse lido santo Agostinho, saberia disso.
E sobre um Deus criado pela imaginação humana, a tese, que é uma repetição do trio maravilha (Feuerbach, Marx, Freud), não passa de uma profissão de fé, impossível de prova racional. Não é preciso ser crente para subscrever o truísmo: é impossível provar a existência, ou a inexistência, de Deus.
Verdade que o objetivo de Hitchens não é apenas esse. A existência de Deus é um pormenor quando existem homens que matam em Seu nome. Matam em Belfast. Em Beirut. Em Belgrado. Em Belém. Em Bagdá. E apenas para ficarmos pela letra "B", como diz Hitchens com típico humor.
Infelizmente, e uma vez mais, o humor não basta. Não basta porque não é possível condenar toda a religião organizada tendo em conta as suas expressões mais extremas. Porque tudo pode ser perigoso quando levado ao extremo: a fé; a raça; a nação; o amor; o futebol; a estupidez. Além disso, os problemas que Hitchens traz na sua lista "B" não são apenas explicáveis pela religião. Só um ingênuo acredita, por exemplo, que o problema israelo-palestino é uma contenta religiosa entre extremistas. A história, a política e as ideologias que sacudiram o Oriente Médio (desde, pelo menos, a queda do Império Otomano) tiveram uma palavra maior.
Soluções? Para começar, Hitchens não aceita a objeção esperada de que os regimes que aboliram a religião acabaram por descer a níveis impensáveis de desumanidade. Desde logo porque, para o autor, esses regimes não aboliram a religião; apenas a transmutaram numa ideologia servida por capacidade tecnológica letal.
Ainda que isso fosse verdade (não é), esse seria um argumento a favor da manutenção de uma religião tradicional (como Burke, no século 18, ou Tocqueville, no século 19, ou Aron, já no século 20, sublinharam). A religião tradicional é conhecida. A transmutação gera o desconhecido.
Para terminar, Hitchens lança um convite para um novo "iluminismo", capaz de dispensar a religião e alimentar a alma humana com arte e literatura. É uma boa proposta, sem dúvida, mas talvez fosse interessante saber que tipo de arte e literatura Hitchens aconselha aos novos iluminados. Razão simples: a história da arte no Ocidente é indissociável da herança judaico-cristã que a contaminou. Eu, pessoalmente, só vejo um caminho: lançar na fogueira todas as obras que transportem resquícios religiosos.
Porque esse é o problema do panfleto de Hitchens: preocupado em derrubar a religião, o seu ateísmo converte-se numa nova forma de religião. Dogmática, intolerante. E, como em todos os extremismos, capaz de conceder a Deus uma importância de vida ou morte. Sobretudo a um Deus em que não se acredita. É a suprema ironia.
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