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Proibições, crenças e liberdade
Jornal do Brasil, 26/07/2004
Maria Lúcia Karam
Juíza de Direito aposentada
O debate sobre a interrupção da gravidez diante de anencefalia do feto sugere reflexões que em muito ultrapassam os limites da questão levada a exame do STF. Trata-se de pensar no proibicionismo, na imposição de crenças e, antes de tudo, na liberdade.
Um primeiro questionamento diz respeito à própria proibição do aborto. Não é o aborto simples meio de planejamento familiar, forma de assegurar a livre opção pela maternidade ou direito da mulher sobre seu corpo. Abortar é provocar a morte do produto da concepção, que, embrião ou feto, é uma vida humana, que, embora dependente, embora ainda não tendo a qualidade de pessoa, tem direitos, inclusive o direito à vida, que ao Estado cabe assegurar.
Mas o reconhecimento desse direito à vida longe está de sugerir a proibição. Ao contrário, a descriminalização do aborto se faz urgentemente necessária. A criminalização não impede e nunca impediu a realização de abortos. Mas a razão que deve conduzir ao afastamento da proibição não está apenas em sua demonstrada inutilidade para evitar a morte de embriões ou fetos. Como acontece em outros campos, o pior da proibição está nos danos que ela própria causa. No caso do aborto, às não evitadas mortes de embriões ou fetos somam-se as mortes e lesões sofridas por milhares de mulheres em decorrência das condições precárias de sua realização clandestina. É, antes de tudo, para evitar essas mortes e lesões que se faz imperativo o reconhecimento da liberdade da mulher de optar pelo aborto, assegurando-se sua realização no sistema público de saúde.
Os direitos do nascituro (inclusive o direito à vida) se exercem através da gestante, que, no âmbito das relações sociais - e até pela condição que a própria natureza (ou a criação divina) lhe deu -, é titular dessa vida que traz em seu ventre. E direitos podem deixar de ser exercidos por quem tem sua titularidade. Na regra do Código Penal brasileiro, que autoriza a realização do aborto no caso de gravidez resultante de estupro (art.128, II), o legislador criou uma permissão que só se explica pela consideração das repercussões negativas do nascimento indesejado. A coerência e, assim, a razoabilidade estão, pois, a impor a extensão da licitude da realização do aborto com consentimento da gestante a todos os casos em que, por razões diversas, o nascimento se mostre igualmente indesejado.
Além de inútil, incoerente e causadora de mortes e lesões, a proibição ainda impede que muitos embriões e fetos sejam salvos. A legalização, assegurando o acesso ao sistema público de saúde, pode e deve incluir um aconselhamento prévio à realização do aborto, que, não raro, poderá dissuadir a mulher de realizá-lo.
Se a desejada interrupção da gravidez fere uma crença religiosa (o que, de todo modo, é questionável), não se pode simplesmente impor sua proibição a todos, professem ou não aquela crença, ainda mais com a utilização do poder do Estado de punir. A liberdade de crença religiosa, para ser efetivamente exercida, supõe que estejam asseguradas as opções individuais pelas mais diversas expressões da fé em Deus, supondo igualmente a garantia das opções individuais pela negação de qualquer crença. Nesse campo, para assegurar a liberdade e, assim, a dignidade da pessoa, o Estado há de ser neutro - laico, portanto -, não estando autorizado nem a restringir expressões religiosas nem a impor uma ou outra crença, legislando com base em pautas morais ditadas por representantes de uma ou outra religião.
Por outro lado, punições - e, portanto, exclusões - são práticas nada harmônicas com sentimentos religiosos. Cristo, contrariando as diretrizes punitivas de sua época, ensinou a respeitar e acolher todos os discriminados e puníveis. Basta lembrar do exemplar episódio, narrado nos Evangelhos, da mulher adúltera que os farisaicos ''religiosos'', impositores da moral e inspiradores da lei, queriam punir com o apedrejamento.
Crenças religiosas não se harmonizam com proibições. A verdadeira fé supõe a liberdade. Crer é escolher livremente. As diversas proibições, ditadas por religiões institucionalizadas, são apenas expressões terrenas de exercício de poder.
A transformação do indivíduo não pode ser uma imposição, nem do Estado nem de igrejas nem de quem quer que seja. Nem mesmo sua libertação do que, para os outros, pareça uma opressão. Pense-se no uso do véu pelas mulheres muçulmanas. Assim como a imposição de uma tal indumentária fere direitos fundamentais, sua proibição é igualmente incompatível com a liberdade e, assim, com a dignidade. Feministas que aplaudiram a iniciativa do Estado francês de proibir o uso do véu em estabelecimentos de ensino público, esquecidas das opressões que recaem sobre as mulheres ocidentais, sujeitas a padrões de sexualidade exigentes de corpos perfeitos, moldados até por agressoras intervenções cirúrgicas, não percebem o paradoxo. Pensam que a proibição do véu - indevida proibição da expressão de uma crença religiosa - serviria para libertar as mulheres muçulmanas. Mas, para se libertar de uma imposição, seria preciso se submeter a uma outra proibição? Como ser livre sem possibilidade de escolha?
Mulheres não devem ser impedidas de usar o véu, se livremente desejam assim expressar sua crença. De igual modo, não devem ser obrigadas a usar esse mesmo véu, para serem forçadas a se comportar como determinam porta-vozes de crenças muçulmanas, que se julgam os únicos autorizados a dizer como devem ser as relações delas com Deus. Mulheres também devem ser livres para interromper uma gravidez indesejada. Não devem ser forçadas a se comportar como determinam porta-vozes religiosos que, sugerindo a indevida identificação entre crime e pecado, igualmente se julgam os únicos autorizados a dizer como devem ser as relações das pessoas com Deus.
Notas minhas: Ela toca em alguns pontos legais como a consequência diferenciada para classes sociais distintas no tocante ao aborto.
Lembra que a lei permite o aborto e não obriga a abortar, ou seja, acima de tudo , a lei garante a liberdade de escolha.
Só não sou muito a favor do exemplo que ela utilizou do Estado francês, mas isso entraria em outra questão.
Um abraço a todos.
Edited by Anderson - 27/7/2004, 08:01
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